Évora em Nós

segunda-feira, agosto 21, 2006

A Cidade...

A cidade é um chão de palavras pisadas
a palavra criança a palavra segredo.
A cidade é um céu de palavras paradas
a palavra distância e a palavra medo.
A cidade é um saco um pulmão que respira
pela palavra água pela palavra brisa
A cidade é um poro um corpo que transpira
pela palavra sangue pela palavra ira.
A cidade tem praças de palavras abertas
como estátuas mandadas apear.
A cidade tem ruas de palavras desertas
como jardins mandados arrancar.
A palavra sarcasmo é uma rosa rubra.
A palavra silêncio é uma rosa chá.
Não há céu de palavras que a cidade não cubra
não há rua de sons que a palavra não corra
à procura da sombra de uma luz que não há.
José Carlos Ary dos Santos/José Afonso

Muitos anos passaram desde que estes dois “monstros” da cultura e da revolução portuguesa escreveram e descreveram “A cidade…”. Alguns anos passaram desde que pela primeira vez descobri a cidade que, anos depois, nos haveria de acolher. Poucos anos passaram desde que conheci realmente a “nossa cidade”…

Uma cidade que afinal continha tudo aquilo que Ary dos Santos e “Zeca” Afonso cantaram, tudo aquilo que havia descoberto e todos vocês… Foi assim que esta cidade se tornou deslumbrante para os meus olhos e especial para a minha alma.

Foi-o assim durante cinco anos… Sinto que a pouco e pouco está a deixar de sê-lo. Porque esta cidade é fruto de uma construção, de um processo, de “um chão de palavras pisadas”, da “palavra criança”, da “palavra segredo”, da “palavra distância”, da “palavra medo”, da “palavra água”, da “palavra brisa”, da “palavra sangue”, da “palavra ira”, da “palavra água”, da “palavra sarcasmo”, da “palavra silêncio”.

Esta Évora do início do milénio será por mim sempre recordada. Foi a cidade onde mais (e melhor) me senti, foi a cidade onde mais cresci, aprendi, sorri. Foi a cidade onde todos descobri.

Gostaria que a capacidade que tivemos de construir esta cidade não fosse correspondida pela capacidade de a desconstruirmos. Que alguma da distância (física e não física) que assolou as nossas relações não tivesse o poder de com ela levar “a cidade”.

Porque agora a cidade é cada vez mais um “céu de palavras paradas”, onde as pessoas pairam e as palavras se encontram amarradas… espero que este "Évora em nós" nos proporcione a “sombra de uma luz que [cada vez mais] não há”.